Economia e Negócios
Do direito de cidadania europeia a montanhas, tudo está à venda
O governo de Malta tomou decisão inédita na semana passada: está vendendo passaporte e cidadania europeia. Preço: 650 mil. Do centro de Barcelona, dos prédios elegantes de Paris ao sul de Portugal, passando por Grécia, Espanha, Itália e Irlanda, governos europeus estão colocando tudo à venda, num esforço para atrair investidores. A meta é reduzir dívidas recorde. De casas a estradas, de portos a estádios, de montanhas e ilhas a empresas de infraestrutura, de tanques de guerra usados a correios. Hoje, tudo está à venda na Europa, inclusive o cobiçado passaporte estrelado.
Cinco anos depois de uma crise que abalou o continente, Bruxelas se deu conta de que superar a recessão não será trabalho fácil e que precisa encontrar investidores pelo mundo para ajudar o bloco a sair da crise. Nas capitais europeias e mesmo nas pequenas cidades, ninguém mais esconde: a Europa está em liquidação e a hora é a de vender.
Um dos casos mais polêmicos é o de Malta que, em troca da cidadania europeia e da autorização para trabalhar em qualquer país do bloco, exige que o interessado faça um investimento. O primeiro-ministro, Joseph Muscat, afirmou que seu plano atrairia “indivíduos de alto valor” e, por suas pesquisas, 45 deles poderiam aplicar 30 milhões na ilha. A Henley & Partners, empresa que assessora o governo, estima que 300 pessoas poderiam ganhar a cidadania por ano.
Caso esse investidor tenha família, cada membro pagaria também pelo passaporte. Mas as taxas seriam menores: 25 mil. A oposição na ilha rapidamente prometeu derrubar a lei. Mas pode ter problemas diante da proliferação de “vendas” como as de Malta. Em Chipre, um investidor ganha cidadania europeia ao aplicar US$ 3,2 milhões, enquanto no Reino Unido um visto de residência sai por US$ 1,6 milhão. Na Espanha, o governo quer dar o visto a qualquer um que compre uma casa por pelo menos US$ 215 mil.
Numa Europa que conhece sua pior crise em 70 anos, a ordem dada pela Comissão Europeia, FMI e Banco Central Europeu (a Troica) aos governos não foi apenas a de reduzir gastos ou vender passaportes. Mas principalmente de se desfazer de ativos, acabar com estatais e vender tudo o que poderia ser de atribuição do setor privado.
Na Irlanda, o governo pôs à venda a empresa de gás Bord Gais, a Aer Lingus, sua empresa florestal Coillte e até o Haras Nacional, de onde saem alguns dos melhores cavalos do mundo. No Reino Unido, o governo vende prédios de embaixadas, equipamentos militares usados, além de 72 aviões, helicópteros e veículos Land Rover.
No caso espanhol, a grande polêmica foi a privatização parcial de hospitais públicos, enquanto na França o governo vende 1,7 mil imóveis, inclusive castelos históricos e vinícolas. No total, Paris controla 1,5 mil estatais, que empregam 785 mil pessoas. Na Itália, 9 mil edifícios, praias, fortes, ilhas e palácios em Veneza estão à venda e a meta estabelecida ainda no governo de Mario Monti foi o de arrecadar 1% do PIB por ano com essas vendas até 2018.
Dados da ONU sustentam a tese de que, com a venda de ativos, altos investimentos entraram em alguns desses países. A Irlanda, por exemplo, registrou um salto de 34% no fluxo de investimentos externos entre 2012 e o primeiro semestre de 2013. No Reino Unido, o aumento foi de 87%, chegando a US$ 74 bilhões. Uma das principais surpresas foi a Espanha, que viu a entrada de recursos crescer 88%, chegando a US$ 20 bilhões por estrangeiro no país apenas no primeiro semestre.
Parte do fluxo tem como explicação o desembarque de algumas das maiores fortunas do mundo que, como Bill Gates, optaram por aproveitar o momento de crise e adquirir empresas locais. Segundo uma recente publicação da ONU, o fluxo de dinheiro para a Espanha se explica pelo fato de que os “custos de trabalho estão atraindo as corporações transnacionais”. Em outras palavras, a redução drástica de salários agora virou um fator positivo
Missões. Levantamento da Goldman Sachs apontou que, no primeiro semestre, investidores americanos aplicaram US$ 66 bilhões nas bolsas europeias, o maior valor desde 1977. Governos europeus têm realizado missões a Moscou, Pequim, Dubai ou São Paulo, em busca de compradores.
O resultado tem sido irônico: estatais europeias sendo compradas por estatais de emergentes. A chinesa State Grid adquiriu 25% da transportadora energética portuguesa REN por 400 milhões, enquanto a Three Gorges passou a ser a maior acionista da EDP, empresa do setor energético de Portugal. No setor privado, o número de compras de empresas chinesas na Europa com valor acima de US$ 1 milhão dobrou entre 2010 e 2011, chegando a 50. Hoje, só na Alemanha, empresas chinesas já adquiriram 146 locais.
Dieter Brauninger, autor de um estudo realizado pelo Deutsche Bank, confirma que o momento pode ser interessante para a onda de privatização e de compras. “Investidores internacionais voltam a se interessar pela Europa.” Segundo dados oficiais, o volume de investimentos estrangeiros na zona do euro triplicou entre o segundo semestre de 2012 e o primeiro de 2013.
Ainda assim, o banco alemão diz que a Europa não pode “superestimar” o valor que governos conseguirão atrair com as privatizações. Segundo a ONU, a Europa e a América Latina receberam nos seis primeiros meses do ano exatamente o mesmo montante de investimentos: US$ 165 bilhões.
Um dos obstáculos, segundo Brauninger, é a forte oposição ainda existente entre sindicatos e partidos de oposição. Outro problema é que muitas dessas empresas, inclusive os prédios à venda, precisam passar por ampla reforma antes que o setor privado ofereça de fato muito dinheiro. “Políticos em países com altas taxas de desemprego terão dificuldades para transformar estatais em empresas mais competitivas, já que para isso teriam de demitir muita gente.”
Uma polêmica ainda maior ocorre quando símbolos locais passam a ser comercializados. Na Áustria, o governo foi obrigado a rever seus planos depois que colocou à venda dois picos nos Alpes. Para um país cuja letra do hino começa com “Terra das Montanhas”, a decisão de vender o Rosskopf, com 2,6 mil metros de altitude e o Grosse Kinigat, com 2,7 mil metros, causou comoção nacional. Cada um deles seria vendido por 121 mil.
A histórica estátua de Cristóvão Colombo, no porto de Barcelona, também foi alvo de polêmica neste ano. Endividada, a prefeitura local alugou o corpo do navegador para que a Qatar Airways colocasse uma camisa do Barça e, por duas semanas, promovesse sua marca. Em troca, pagou 100 mil para a prefeitura falida.
Muitos acreditam que isso seria o equivalente a alugar o Cristo Redentor para a Coca-Cola ou a Torre Eiffel para a Toyota. Mas, na prefeitura de Barcelona, todos dão o caso por encerrado e garantem que, em 2014, não apenas Colombo como outros símbolos da cidade poderão ser alugados. “A crise está fazendo a Europa repensar seus princípios”, lamentou um político catalão, que pediu para não ser identificado.