Quando construído, na década de 1950, o elevado ajudou difundir no Rio uma mentalidade típica dos anos 1960 e 1970, e que se estende até os dias de hoje: a das cidades fluidas e aceleradas, planejadas principalmente em função dos carros. Parte da zona central carioca deixou de ser um lugar de interação social e bem-estar e se tornou uma simples via de passagem de veículos. Espaços caminháveis encolheram em diversas áreas da cidade, e deram lugar a ambientes hostis a pedestres.
Taxado como “old mobility” (velha mobilidade) pelos defensores das novas tendências urbanísticas, o conceito perde força pelo mundo. As razões são muitas: altas do preço do petróleo, aumento das horas perdidas dentro de carros (uma recente pesquisa mostrou que a Cidade Maravilhosa tem o terceiro pior trânsito do mundo) e de doenças causadas pela Poluição do ar. Diante disso, não seria absurdo dizer que o fim da Perimetral, junto com a abertura de praças, boulevards e vias mais amigáveis aos pedestres, pode sinalizar o rompimento com uma maneira ultrapassada de planejar espaços urbanos. Entre os urbanistas, há um consenso de que atualizar a visão de mobilidade, contemplando a desaceleração e priorizando a qualidade de vida, é um dos maiores desafios para o futuro do Rio e das cidades brasileiras.
– O Brasil se urbanizou muito mais depressa do que outras partes do mundo, gerando distorções que existem até hoje – diz Valter Caldana, arquiteto e urbanista, diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. – O mais grave é não enfrentarmos este problema com olhos no futuro. O mundo está percebendo que a qualidade de vida passa pela cidade de baixa velocidade, com projetos que priorizem o pedestre e promovam uma nova relação entre o cidadão e a cidade. A demolição da Perimetral é um excelente indicador de mudança, que tem que ser seguido por outras cidades brasileiras, como São Paulo em relação ao Minhocão, por exemplo.
Já no final dos anos 60, quando o Brasil começava a multiplicar seus viadutos, um jovem economista americano chamado Eric Britton passou a defender novas formas de deslocamento, condenando o simplismo da “velha mobilidade”. Ele foi um dos primeiros a perceber que a complexidade de uma cidade não passava apenas por seus sistemas de transportes, mas também pelas experiências humanas e suas interações sociais. Cabia ao design urbano criar um ambiente propício para elas. Hoje, Britton é diretor da EcoPlan International, uma rede independente que fornece conselhos estratégicos para governos e empresas sobre questões técnico-sociais e Desenvolvimento Sustentável, e também é professor do Institut Supérieur de Gestion, de Paris.
Procurado pela Revista Amanhã, Britton mostrou certa frustração ao ser perguntado sobre soluções para desacelerar as cidades e criar maneiras mais amigáveis de se deslocar pelos espaços. A própria pergunta, segundo ele, demonstra que ainda há muito que ser feito, não apenas no Brasil.
– Sabíamos quase tudo que precisávamos para construir lindas cidades nos anos 1970. Alguns as fizeram. Mas toda uma geração passou e eu ainda estou tentando fazer isso acontecer – lamenta.
Britton conhece o contexto brasileiro. Esteve algumas vezes no país e, no fim dos anos 1970, até lançou um livro dedicado às estratégias de transporte para o Brasil, intitulado “Preparando-se para os anos 80″. Acostumado a usar analogias, ele compara as cidades atuais a uma pessoa doente. Para tirá-las da UTI, é preciso que a sociedade discuta, com diversos grupos procurando juntos por soluções. –
Sabemos que o futuro da cidade é ter menos carros, mas ainda assim muitos carros, e se movendo em lugares diferentes, e de maneiras diferentes – prevê.
– Se as cidades não derem atenção à nova mobilidade, elas terão perdas econômicas. No século XXI, as cidades competem entre si. E se um lugar com um trânsito caótico como São Paulo não resolver seus problemas, os jovens brasileiros irão para outros com melhor qualidade de vida. As indústrias internacionais não irão estabelecer serviços e fábricas, porque sabem que não terão lá seus melhores funcionários. Valter Caldana cita quatro questões urgentes para tornar as cidades mais agradáveis para a circulação: enterrar a fiação, priorizar a chamada pedestrianização através de calçamento, aumentar a arborização e criar leis que fiscalizem anúncios.
Já a mobilidade do futuro é frequentemente associada a um retorno das cidades vagarosas e, consequentemente, mais sustentáveis. Mas este novo ritmo depende de muitos fatores. A diversidade dos transportes coletivos é um deles. Meios alternativos e livres de combustível deverão ligar alguns pontos.
No Rio, as novidades passam pelo futuro Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), que até 2016 tem a promessa de circular no Centro e na Região Portuária do Rio; e um possível aproveitamento do transporte hidroviário, hoje muito abaixo do que a geografia carioca oferece.
Com suas lagoas, a Barra poderia se beneficiar de um projeto da Grove Boats SA, que prevê a criação de um barco eletro-solar integrado ao novo metrô e outros meios de transporte, como bicicletas e vans. Outro fator importante é um maior adensamento, com mais pessoas mudando-se para as zonas centrais, perto dos seus locais de trabalhos – o que reduziria a necessidade de deslocamentos.
No futuro, é possível sonhar com mudanças radicais. Assim como Copenhague transformou com sucesso uma de suas mais movimentadas ruas centrais num agradável calçadão, o Rio poderia fazer o mesmo com parte da Avenida Rio Branco, por exemplo. A revolução urbana, contudo, não depende apenas de grandes obras e projetos superdimensionados. Iniciativas simples podem promover mudanças significativas. Presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, Washington Fajardo lembra que pequenas intervenções transformaram alguns pontos da cidade.
Ao acabar com um retorno para carros na Lapa, toda uma pequena área do bairro se revitalizou: prédios abandonados foram recuperados e o comércio floresceu. Num lugar antes quase deserto, hoje é possível tomar um chopp e observar o movimento.
– A cidade é cheia destes retorninhos desnecessários, que tiram o espaço para o pedestre e sugam a vida social – lembra.
Ele cita também a ampliação da Praça Tiradentes após a retirada de um estacionamento. Segundo o secretário, o espaço “reconquistou sua significância”. Há ainda a própria derrubada da Perimetral, que permitirá a criação de um passeio público arborizado entre o Armazém 7 e a Praça Mauá, com 44 mil metros quadrados para os pedestres.
– São duas escalas: conquistar melhorias com maior interação e o aumento do comércio local nestes pontos caminháveis, mas também pensar nas pessoas que moram longe – diz Fajardo. – Quem mora em Campo Grande precisa chegar no Centro com facilidade. Este retorno à cidade mais caminhável não pode estimular uma agenda conservadora, com uma cidade que se fecha em feudos. O espaço público é um lugar de contatos, e para isso os grandes deslocamentos precisam funcionar bem.
Nos primórdios da chamada “car culture” (cultura do carro), o automóvel virou símbolo de liberdade. Era visto com romantismo pela geração Beat e seu livro-manifesto “On the road”. Hoje, tudo mudou. Para Britton, “velha mobilidade” é ficar horas preso dentro do seu carro, procurando por vagas; já a nova mobilidade, como bicicletas e transportantes alternativos, é a “liberdade destilada”. Na metade dos anos 2000, a cidade de Bogotá se tornou referência ao perceber que as pessoas não precisavam ser ricas para se sentirem ricas. Ao reduzir o domínio dos carros e oferecer mais espaços públicos à população, ela lhes devolveu alguns prazeres simples, como a convivências nas ruas e a possibilidade de sentar, respirar e olhar à sua volta com calma.
Com a nova política, Bogotá se tornou uma cidade agradável para pessoas de 8 a 80 anos. E melhorou sua segurança. A razão é simples: lugares com mais pedestres parecem mais seguros. E, como diversos estudos comprovam, lugares que parecem mais seguros também costumam ser, de fato, mais seguros. Para Valter Caldana, a velha mobilidade inibe a sensação de pertencimento e, consequentemente, o cuidado com o patrimônio público. Neste sentido, ajudaria a explicar as recentes manifestações pelo país. Entre outras exigências, a população anseia recuperar um espaço que lhe foi tomado.
– As jornadas de junho e julho foram um marco do urbanístico porque resultaram numa marcha pelos direitos urbanos. Uma das pautas era: “queremos outro modelo de cidade, porque este se esgotou”.
Fonte: Jornal O Globo – 26/11/2013